artigo
Dinâmicas superpostas da malária e das endemias dependentes
de condições de vida no Sudeste brasileiro do século XIX
Por Carlos Alberto Medeiros Lima
(UFPR / CNPq)
carlima3@gmail.com
Rio
de Janeiro, abril de 2018
Neste
artigo analisa-se a evolução da incidência da malária e de um grupo de afecções
formado pela disenteria, as diarreias, a gastroenterite e as verminoses em
algumas vilas rurais do Sudeste brasileiro, assim como na seção rural da cidade
do Rio de Janeiro ao longo do segundo terço do século XIX. Tomam-se em
consideração registros paroquiais de óbitos de livres e escravos agrupados
segundo as idades e condições dos falecidos. Reúnem-se indicações de que a
incidência do segundo grupo de moléstias teve um ritmo de crescimento muito
mais rápido que o da população. A incidência da malária, diversamente, executou
um ciclo. Os dois processos são vistos como o resultado do desenvolvimento da
agricultura de exportação e do crescimento da população. O exame dos óbitos de
grupos de irmãos livres mostra que os dois tipos de causa realmente se
conjugavam no interior de trajetos familiares, não constituindo fenômenos
próprios de nichos diferentes no interior de cada vila.
Palavras chave: morbidade
livre e escrava – Sudeste brasileiro, século XIX – malária – ancilostomíase
Dinámicas superpuestas de la malaria y de las endemías
dependientes de condiciones de vida en el Sureste brasileño del siglo XIX
En el artículo
se analiza la evolución de la incidencia de la malaria y de un grupo de
afecciones formado por la disentería, las diarreas, la gastroenteritis y las
verminosis en algunas villas rurales del Sureste brasileño y en la sección
rural de la ciudad de Rio de Janeiro durante el segundo tercio del siglo XIX.
Tomase en consideración registros parroquiales de defunción de esclavos y
libres, agrupándose los registros en acuerdo a las edades y condiciones de los
fallecidos. Se reúnen indicaciones de que la incidencia del segundo grupo de
afecciones tuvo un ritmo de crecimiento mucho más rápido que el de la
población. La incidencia de la malaria, diversamente, ejecutó un ciclo. Los dos
procesos son vistos como resultados del desarrollo de la agricultura de
exportación y del crecimiento de la población. El examen de los óbitos de
grupos de hermanos libres muestra que los dos tipos de causa realmente se
conyugaban en el interior de trayectos familiares, no constituyendo fenómenos
propios de locales diferentes en el interior de cada villa.
Palabras clave: morbilidad esclava y libre – Sureste brasileño en el siglo XIX –
malaria – anquilostomiasis
Superimposed dynamics of malaria and of diseases
related to living conditions in Brazilian Southeast (XIXth
century)
In this article
I analyze the evolution of the incidence of malaria and of a group of diseases
constituted of dysentery, diarrhea, gastroenteritis and worm infections in
rural villages of Brazilian Southeast and in the rural section of the city of
Rio de Janeiro during the second third of the nineteenth century. I use burial
records of slaves and free people, classifying them according to the ages and
conditions of the deceased. Information is gathered on the enhanced incidence
of the second group of diseases, noting that this incidence grew faster than
local populations. The incidence of malaria, on the other hand, performed a
cycle. Both processes are seen as results of the development of export-oriented
agriculture and of population growth. The examination of burials of members of
groups of siblings shows that both types of disease appeared together or
consecutively inside each of these family histories. They didn’t perform as if
they were attached to different parts of each village.
Key words: slave
and free morbidity – Brazilian Southeast during the XIXth century–
malaria – anchilostomiasis
Introdução
Este
artigo aborda a dinâmica, no século XIX, de dois tipos de endemia rural no
Sudeste brasileiro. Usa para tanto registros de óbito de livres e escravos,
partindo de considerações extraídas de uma controvérsia a respeito da altura de
escravos norte-americanos.
Há tempos debatem-se os
trabalhos de Steckel sobre a altura de crianças escravas nos Estados Unidos do
século XIX. A ênfase que pôs em questões nutricionais foi criticada por Coelho
e McGuire, partidários de respostas vinculadas à morbidade. A solução dos
problemas implicados é difícil, graças ao peso posto por Steckel no crescimento
de púberes, capaz de superar a defasagem entre as alturas de crianças livres e
escravas (catch-up growth). Ainda
assim, no decorrer dos debates Coelho e McGuire produziram um relato sobre
doenças de livres e escravos em plantations
norte-americanas que pode ser esclarecedor em relação a alguns processos
entrevistos na documentação sobre o Sudeste brasileiro (Coelho e McGuire 2000; Coelho
e McGuire 1999; Steckel 1985; Steckel 2000; Steckel 1986).
Ancilóstomos e
plasmódios teriam sido os patógenos mais frequentes nas plantations. Quanto a escravos, havia o malsão ambiente das
enfermarias (nurseries) onde se
concentravam as crianças, em comparação com o qual até os campos onde
trabalhavam adultos eram salubres, dadas suas imunidades à malária, que não
impediam fortíssimas incidências entre crianças.
Quanto a livres, a
infância era marcada por ambientes mais salubres que os campos. Eram menos
doentios que as enfermarias. Por outro lado, quando os nascidos em liberdade passavam
a frequentar, já adultos, as áreas cultivadas, começavam a enfrentar forte
insalubridade. Assim, a infância livre era mais saudável que a escrava, enquanto
a idade adulta dos cativos era menos malsã que a dos nascidos em liberdade. Assim
as passagens para a vida adulta de cativos e livres significavam movimentos
inversos no tocante aos contatos com a insalubridade. Recorde-se que estão
discutindo ideias de Steckel sobre as grandes diferenças notadas no início da
vida das crianças escravas em relação às livres reduzirem-se substancialmente
quando se tratava dos adultos das duas condições jurídicas, o que leva a supor
elevado crescimento dos escravos púberes. Mas o que de modo mais circunscrito interessa
à feitura do presente trabalho é a ideia, subjacente ao raciocínio de Coelho e
McGuire, de que a malária e a ancilostomíase tinham movimentos inversos e coordenados
na vida dos cativos e dos livres (Coelho e McGuire 1999, 152-153).
Teria
havido uma espécie de exclusão recíproca entre a malária e os vermes, governado
o trade off pelo microambiente
preferencialmente frequentado por grupos etários e de condição jurídica no
interior do complexo da fazenda. Isso significa que esses tipos de doença, ambos
de corte ambiental, como que se excluiriam, especializando-se em microambientes
distintos. Significa, como decorrência, que as experiências que conduziam a
elas eram específicas de faixas etárias.
É
importante dar atenção à adequação, tratando-se de análises de áreas rurais, da
ênfase posta em doenças que implicam mais a relação com elementos do ambiente –
mosquitos, o chão onde vermes aguardavam seus novos hospedeiros, a água – do
que a transmissão de pessoa a pessoa ou o impacto de acontecimentos atlânticos.
É muito significativa a ênfase posta por Coelho e McGuire em endemias rurais,
mesmo que abordem a dinâmica norte-americana, sabendo-se que o Sul escravista
anterior à Guerra de Secessão enfrentou a dramática chegada das pandemias do
século XIX já desde os anos 1830, época na qual o cólera fez grandes estragos
entre os cativos. Essa ênfase deve ser ainda mais decidida no caso brasileiro,
pois o Império esteve livre das pandemias oitocentistas durante toda a primeira
metade do século (sobre a chegada do cólera ao Rio de Janeiro, ver Kodama et al. 2012).
Realmente, estudos que abordam a morbidade no Sudeste e em outras partes da
Colônia e do Império vêm pondo acento nas endemias rurais e na preponderância
endêmica entre os males urbanos (Reis 1991, 36; Barbosa e Gomes 2008).
Em
muitas áreas de investigação substitui-se a ênfase excessiva em choques
atlânticos súbitos pelo foco em endemias rurais mais discretas, mas igualmente
ou ainda mais destrutivas, como se lê em trabalhos de Livi Bacci (2007,
145-146) e Cook (1998, 134-135) sobre as Américas, do mesmo modo que nas
apreciações de Hemming (2009, 289) sobre a passagem, na Amazônia de ca. 1800, das crises da varíola para a mortalidade
constantemente alta provocada pela malária. Isso se manifesta na precisa ênfase
de Marcílio (1984, 193-207) no problema do hábitat, mesmo que sua análise se
aplique mais a livres que a escravos rurais, assim como na análise de Gurgel
(2010, 39-41) sobre as parasitoses “brasilíndias”.
Fontes
e limites da abordagem
Neste
trabalho, examinam-se questões correlatas quanto ao Sudeste brasileiro nos anos
centrais do século XIX. Primeiramente, considerar-se-ão diversos municípios que
só podem ser abordados de maneira estática, para, posteriormente, compararem-se
de modo um pouco mais detido duas localidades do Oeste Paulista, então
claramente uma fronteira agrária expansiva.[1]
Esses dois municípios são Limeira e Capivari, sobre os quais um pouco mais de
detalhe será veiculado adiante.
Conhecem-se
as dificuldades de trabalhar com atribuições de causas de morte pelos párocos
do século XIX. Supõe-se útil considerar que os registros não apontam para a
história da doença ou dos doentes. Elas indicam, sobretudo, as condições
sanitárias da localidade, assim como essas condições (os sintomas
preponderantemente vistos nas pessoas) eram interpretados com as categorias do
período. Sugerem que um dado sintoma era muito importante e difundido, permitindo
entrever mudanças quanto a isso. Essa avaliação global sobre as condições
locais, com todas as suas distorções, provavelmente intervinha com muita força
a cada vez que padres, vizinhos e familiares atribuíam uma causa a uma morte.
Além disso, há o enorme problema do sub-registro, que torna impossível propor
taxas de mortalidade. É tentador, por exemplo (mas não deve ser feito), notar
que a participação dos óbitos de escravos no total dos falecimentos era
proporcionalmente maior que sua participação na população. Só o fato de que
isso é mais ou menos óbvio daria alguma segurança. Por outro lado, se é
impossível saber qual é o viés introduzido pelo sub-registro no movimento de
registros, não há nenhuma razão para supor ter havido algum enviezamento no
tocante às causas atribuídas, inexistindo motivos para supor que algumas causas
teriam mais chances que outras de escapar do sub-registro.
Neste
artigo considerar-se-ão as mortes atribuídas a apenas algumas causas, agrupando-as
em dois tipos, em vista de seu objetivo de observar a evolução das endemias
rurais. De um lado, recortam-se, isoladamente, os óbitos por “febres”,
propondo-se que a classificação indicava a malária (a maior parte das mortes
por “febres”, durante a maior parte do tempo, associou-se ao impaludismo; ainda
assim, essa associação é proposta apenas em um primeiro momento, pois adiante
serão apontadas exceções e mudanças nesse quadro). De outro lado, uma segunda categoria
agrupa males frequentemente separados por analistas, lidando com eles como
sinais de um conjunto de outras endemias, tornadas contíguas por fazerem
referência a vermes não especificados, lombrigas, ancilóstomos (indiretamente,
por intermédio da atribuição de várias mortes, especialmente de adultos, à
hidropisia, conforme, entre outros, Edler 2004), ou então à diarreia, à
disenteria ou à gastroenterite. Da mesma forma que em relação à malária, havia
uma raiz ambiental nesses padecimentos. Diferentemente do impaludismo, eles se
caracterizavam pela coleta direta de patógenos na água ou no solo, em estreita
dependência das condições de vida (calçados, roupa, a água a que se tinha
acesso, o estado dos alimentos etc.). Os mosquitos que funcionavam como vetores
da maleita, diversamente, não respeitavam dado algum de condições de vida. Eles
definitivamente não ligavam para classe social.
A
imprecisão de ambos os agrupamentos é óbvia. O termo “febre” agrupava
possibilidades demais, inclusive por ter sido frequente a confusão entre a
malária e a febre tifoide. Mas é útil a hipótese de que apontava para a malária
nos casos estudados, ao menos como ponto de partida. Quanto às endemias mais
dependentes de condições de vida, diversamente, as doenças incluídas diferiam
muito, e vermes, hidropisia, diarreia, disenteria e gastroenterite constituíam
“causas” que se tentava separar, provavelmente sem muito sucesso em todas as
ocasiões. Os responsáveis pelos registros deviam fazer confusões entre os
diversos membros do conjunto. Unia-as o fato de seus patógenos serem apanhadas
no chão ou na água, ou ainda em alimentos. Isso as separava das “febres”,
embora tenha que permanecer como problema o fato de estas últimas poderem ter
tido um componente importante de febre tifoide, mais parecida com o grupo
água-chão-alimentos que com o grupo mosquitos.
Uma
primeira abordagem, estática, e a impressão de trade off
Acima mencionou-se que a síntese de Coelho e McGuire dá
ideias para ajustar contas com processos entrevistos no Sudeste brasileiro, o
que se tenta verificar agora, em alguma medida. Adiante serão vistos dois casos
em relação aos quais a abordagem poderá ser mais dinâmica. Neste passo,
abordam-se casos que só puderam ser observados em períodos circunscritos, o que
se deveu à necessidade de computar apenas causas de morte nos locais e períodos
em que elas estivessem disponíveis de forma relativamente regular para anos
inteiros, por necessitar-se impedir que as lacunas de informação, interagindo
com a sazonalidade de alguns males, deturpassem a observação.[2]
Ainda assim, nesse nível, notam-se algumas formas muito bruscas de alternância
entre um e outro tipo de mal. Por vezes, um determinado grupo de faixa etária e
condição jurídica transitava do predomínio da malária, em dada época, para uma
situação de forte suscetibilidade às outras endemias, em outro intervalo,
reduzindo-se a incidência do impaludismo. Isso mostra que a adesão de
determinadas doenças a faixas etárias específicas não era constante.
Segue-se o gráfico 1,
agrupando informações sobre áreas que só se pôde sujeitar a observação
descontínua. Separaram-se os óbitos de livres (mais libertos) e escravos,
primeiramente. Em segundo lugar, foram observadas separadamente duas grandes
faixas etárias, sendo a primeira a de crianças com menos que quinze anos e a
segunda, de adultos (15 ou mais anos de idade, com idosos incluídos). Quanto às
idades, os escravos de Bananal constituíram exceção, pois, por haver muitos
anos durante os quais que as pessoas só eram classificadas como “inocentes” ou
“adultas”, com separação na casa dos sete anos de idade, a classificação usada
neste trabalho precisou proceder da mesma forma. Isso incomoda, mas não é
preocupante, pois a proporção dos mortos com idades entre os sete e os quinze
devia ser bem pequena.
Fontes:
Cúria
Diocesana de Lorena: Óbitos – Bananal, livro 1; Óbitos – Bananal,
livro 2, Cúria
Diocesana de Piracicaba: Livro 1 – óbitos – São João Batista de Rio
Claro – 1830-1842; Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Campo de Mogi Guaçu: Óbitos de brancos, libertos e
captivos; Curato de Santa Cruz: Livro de encomendação – livro III, 1864-1878;
1861-1878; Livro de encomendação – livro I. Elaboração própria.
O
curato de Santa Cruz correspondia a parte importante do Oeste da cidade do Rio
de Janeiro. Era marcado pela antiga fazenda de Santa Cruz, primeiro dos
jesuítas e depois do Estado colonial/imperial. A população escrava e a
certamente grande população negra livre local estavam envolvidas em esquemas de
abastecimento da Corte. Mogi Guaçu, apesar de tardiamente, tinha seus recursos
cada vez mais envolvidos com a lavoura cafeeira. Rio Claro na virada da década
de 1830 para seguinte era ainda área de fronteira canavieira, apesar de,
segundo Dean (1977, 45), ter iniciado trânsito para o café na época da
Independência. Bananal, por fim, reteve durante a primeira metade do século XIX
verdadeira exemplaridade enquanto vila cafeeira do Vale do Paraíba paulista (Motta
1999).
Entre
os escravos de Bananal, por exemplo, a malária parecia predominar amplamente ao
redor de 1820, no caso infantil tanto quanto no adulto. Mas a situação se
inverteu bruscamente nos anos 1850, com nítida preponderância – também nos dois
casos – de males derivados do contato com a água inadequada e com os vermes. Em
Rio Claro, ao redor de 1840, as situações das crianças livres e escravas eram
inversas: as cativas eram mais vitimadas pela malária; as livres, pelas outras
endemias.[3]
Adultos das duas condições sofriam mais frequentemente pelas febres. Mogi Guaçu,
no que tocava a crianças, era o palco das outras endemias, mais que da malária.
Essa situação infantil de semelhança de destinos de livres e escravos invertia-se
quando se passava para os adultos: escravos eram mais afetados por hidropisia,
disenteria e similares, ao passo que livres tinham no impaludismo um algoz
importante. Desempenhos contrapostos, conforme a condição jurídica, apareciam
entre as crianças de Santa Cruz, enquanto os adultos eram mais vitimados pela
hidropisia e pelas diarreias, não importando sua condição jurídica.
Esses
resultados afastam o raciocínio da ideia de que, em uma dada região, as
experiências de uma faixa etária – fosse livre, fosse escrava – eram constantes,
reguladas por um modo de vida específico. Os destinos das crianças, por
exemplo, variavam no tempo. Assim, as conjeturas do analista devem voltar-se
mais para diferenças entre localidades no interior desse conjunto que era muito
marcado pela agroexportação, com poucas exceções. Deve-se tratar da história
particular de cada localidade, de trajetos infrarregionais, dadas as mudanças
verificadas na comparação entre momentos específicos.
Note-se
que os dois grupos de doenças considerados matavam muito. Entre crianças livres
e escravas, eles causavam ao redor de metade do total, às vezes bastante mais
que isso. Entre adultos, a proporção afetada por tais males girava ao redor de
um terço. Isso era muita coisa, e corrobora o que ficou mencionado acima sobre
a preponderância endêmica até mesmo em áreas muito marcadas por migrações e
pelo tráfico africano.
Malária e outras
endemias em Capivari e Limeira
A
comparação de diversas áreas do Sudeste feita acima deixou com duas
possibilidades. Pode ter se tratado de um fenômeno de exclusão recíproca das
endemias que dependiam e das que não dependiam de mosquitos como vetores, o que
certamente se enraizaria nos requisitos ambientais de cada uma delas. Por outro
lado, pode ter se dado, muito simplesmente, uma situação de dinâmicas diversas
superpostas, sendo esta a possibilidade mais plausível. Segundo ela, ter-se-ia
tratado de trajetos de formatos diferentes executados pela variação, no tempo,
da importância nos óbitos dos dois tipos de afecção.
Para verificá-lo, como
foi indicado, analisam-se casos com informação suficiente para permitir uma
visada mais dinâmica. Mantêm-se as febres isoladas como indicadoras da malária
e, sob a rubrica das “outras endemias”, continuam a reunir-se as incidências
dos vermes, da disenteria, da diarreia, da gastroenterite e da hidropisia
(tabela 1). Note-se que, em virtude de uma série de elementos, expõem-se na
tabela 1 dados relativos a períodos diferentes, às vezes até mesmo recortando
intervalos diferentes para grupos diversos no interior de uma mesma vila. Isso
se deve aos pontos de partida diversos da observação de cada local. Deve-se
igualmente à disponibilidade diferencial, conforme a vila e de acordo com o
grupo etário e de condição jurídica no interior de cada uma delas, de
informação com qualidade um pouco maior a respeito das causas supostas de morte
(lembre-se que, para cada grupo, foram descartados os anos inteiros que
contivessem falhas na cobertura, mesmo que essas falhas se referissem a apenas
alguns meses). Deve-se também, por fim, à escolha de expor os resultados da
análise recortando o auge do ciclo da malária a que se fará referência a seguir,
e o impacto desse ciclo nos registros diferiu de acordo com o local e com o
grupo abordado.
Tabela 1
Malária e
endemias dependentes de condições de vida em Capivari (1821-1869) e Limeira
(1837-1862) – média anual das mortes pelos dois grupos de causas e relação
entre as médias
|
Capivari
|
||||
|
Crianças
escravas
|
||||
|
Período
|
A
– Malária
|
B
– outras endemias
|
A
/ B
|
|
|
1821-1828
|
0,9
|
1,5
|
0,6
|
|
|
1840-1860
|
18,5
|
5,5
|
3,3
|
|
|
1861-1869
|
13,0
|
17,6
|
0,7
|
|
|
Crianças
livres
|
||||
|
Período
|
A
– Malária
|
B
– outras endemias
|
A
/ B
|
|
|
1825-1836*
|
0,7
|
4,2
|
0,2
|
|
|
1839-1855
|
19,4
|
6,9
|
2,8
|
|
|
1856-1861
|
31,2
|
11,8
|
2,6
|
|
|
Escravos
adultos
|
||||
|
Período
|
A
– Malária
|
B
– outras endemias
|
A
/ B
|
|
|
1821-1828
|
1,4
|
0,9
|
1,6
|
|
|
1840-1860
|
3,6
|
10,9
|
0,3
|
|
|
1861-1869
|
2,4
|
17,3
|
0,1
|
|
|
Adultos
livres
|
||||
|
Período
|
A
– Malária
|
B
– outras endemias
|
A
/ B
|
|
|
1825-1836*
|
0,3
|
2,7
|
0,1
|
|
|
1839-1855
|
2,4
|
8,5
|
0,3
|
|
|
1856-1861
|
2,2
|
10,3
|
0,2
|
|
|
Limeira
|
||||
|
Crianças
escravas
|
||||
|
Período
|
A
– Malária
|
B
– outras endemias
|
A
/ B
|
|
|
1837-45
|
1,8
|
8,2
|
0,2
|
|
|
|
|
|
|
|
|
1852-58
|
2,9
|
12,4
|
0,2
|
|
|
1859-62
|
5,0
|
26,5
|
0,2
|
|
|
Crianças
livres
|
||||
|
Período
|
A
– Malária
|
B
– outras endemias
|
A
/ B
|
|
|
1837-45
|
4,8
|
1,0
|
4,8
|
|
|
|
|
|
|
|
|
1852-58
|
9,7
|
32,6
|
0,3
|
|
|
1859-62
|
21,0
|
51,8
|
0,4
|
|
|
Escravos
adultos
|
||||
|
Período
|
A
– Malária
|
B
– outras endemias
|
A
/ B
|
|
|
1837-45
|
3,1
|
1,6
|
1,9
|
|
|
1850-51
|
8,0
|
1,5
|
5,3
|
|
|
1852-58
|
2,1
|
5,0
|
0,4
|
|
|
1859-62
|
16,8
|
8,3
|
2,0
|
|
|
Adultos
livres
|
||||
|
Período
|
A
– Malária
|
B
– outras endemias
|
A
/ B
|
|
|
1837-45
|
4,1
|
4,1
|
1,0
|
|
|
1850-51
|
8,0
|
7,5
|
1,1
|
|
|
1852-58
|
3,9
|
8,9
|
0,4
|
|
|
1859-62
|
9,0
|
10,3
|
0,9
|
|
* Anos de 1825,
1829, 1832, 1834, 1835 e 1836.
Fontes:
Cúria Diocesana de Piracicaba: São João Batista de Capivari – Óbitos – livro 1;
São João Batista de Capivari – Óbitos – livro 2; Cúria Diocesana de Limeira: Parochia
Limeira – Livro nº 1 – Obitos 1833-março – 1843-julho; Livro segundo 2º de
Obitos de 1843 á 1849; Livro 3 terceiro de Obitos. De 1849 á 1858; Livro 4º de
Obitos de 1858 á 1860; Livro 5 de Obitos. De 1860 á 1864. Elaboração própria.
Entre crianças de
qualquer condição jurídica, o ambiente de Capivari produzia bastante mais casos
de malária que de outras endemias, ao passo que em Limeira as outras endemias
predominaram, no cômputo total, sobre a maleita. Entre adultos de qualquer
condição, as coisas quase se invertiam. Em Capivari, preponderava o conjunto
das outras endemias. Em Limeira, a tendência era a números mais equilibrados dos
dois tipos de doença, com oscilações. A importância da malária em Capivari que
em Limeira pode ser explicada pela prevalência da cana de açúcar na primeira
vila. Inicialmente, o produto também preponderava em Limeira, mas ocorreu ali,
sem paralelos em Capivari, uma transição para o café durante o intervalo
estudado.
A
interpretação dos dados requer que se leve em conta a evolução da população nos
dois locais. A população cativa de Capivari quase dobrou entre 1836 e 1872 (de
1740 para 3189 cativos). A parcela livre quase triplicou no mesmo intervalo (de
1697 para 5008). Em Limeira, os escravos passaram de pouco menos de 1600, em
meados da década de 1840, para 3054 em 1872, e assim também chegaram perto de
dobrar de número. O contingente livre, de cerca de 3700 pessoas em meados dos
anos 1840, alcançou 11229 por ocasião do primeiro recenseamento geral do
Império. Note-se que as populações livre e escrava de Limeira cresceram um
pouco mais rapidamente que a de Capivari (Recenseamento
do Brazil em 1872 – São Paulo, 316, 364; Müller 1978, 140; Maços de
população – “S/ data Piracicaba”, Arquivo Público do Estado de São Paulo).
No período analisado,
por outro lado, o sepultamento de crianças cativas mortas pelas “outras
endemias” cresceu contínua e avassaladoramente nos dois lugares, ultrapassando
francamente o avanço da população escrava. Em Capivari, a incidência da malária
entre esses escravinhos realizou um ciclo nítido, conforme já foi apontado. Uma
reta de avanço contínuo descreve a incidência das outras endemias. Uma parábola
descreve a da malária. Mais outras endemias que febres no início do intervalo
observado; inversão, no sentido de mais febres que “outros” no meio da
observação; novamente mais endemias diversas que malária ao final do período. O
número médio de mortes por outras endemias cresceu bem mais que a população
escrava de Capivari. O caso das crianças cativas de Limeira foi diferente, mas isso
não chega a invalidar a observação. Nesse caso, os dois tipos de doença
cresceram em paralelo.
No
tocante aos cativos adultos da vila que permaneceu canavieira, as “febres”
estiveram preponderantes no início da observação. Cederam depois às outras
endemias, irreversivelmente. Embora não tanto quanto entre as crianças
escravas, as outras endemias avançaram bem mais que a população escrava de
Capivari. Em Limeira, entrevê-se a mesma curva de avanço quase contínuo das
outras endemias e o mesmo ciclo da malária. Parece, no entanto, ter havido um
retorno do impaludismo no fim dos anos 1850. Adiante se voltará a isso.
Entre
crianças livres (Capivari), o trajeto começou com o predomínio das outras
endemias sobre a malária, com inversão subsequente e sem retorno, mas tendo
ocorrido amenização do crescimento da importância das febres nos últimos anos
considerados. A quantidade de mortes por outras endemias avançou mais ou menos ao
ritmo do crescimento da população. A de falecimentos por paludismo avançou bem
mais que a população livre. Apesar da amenização do ritmo do avanço dessa
última doença em Capivari, o crescimento enquanto tal permaneceu tremendamente
grande até 1861. Limeira foi palco de coisa bem diferente. A importância da malária
sempre cresceu, mas as outras endemias avançaram muito mais.
Entre
os adultos livres de Capivari, as outras endemias sempre predominaram, crescendo
quase continuamente. Ademais, o movimento executado pelas febres foi semelhante
ao visto entre os escravos adultos, tendendo a ceder. Como no caso das crianças
de mesma condição, a incidência das febres se reduziu no final, sem que jamais
tenha preponderado sobre as outras endemias entre os adultos dessa condição
jurídica. Mas a malária avançou menos que a população, diferentemente das
outras endemias. Entre os adultos de Limeira nascidos em liberdade, os
movimentos foram semelhantes aos observados quanto aos cativos adultos locais.
Em
alguma medida se vê nos dados a linha ascendente das outras endemias, o que
concorda com as análises de Palmer sobre a relação entre a ancilostomíase e a
expansão agroexportadora: “Inspired by recent historical explorations of
disease ecologies, I connect increasing incidences of serious hookworm disease
with the growth of frontier development, plantation agriculture, and labour
migration” (Palmer 2009, 678).
Já a malária foi vista
executando um ciclo, ou então amenizando, no final, uma trajetória de
crescimento. O final desse ciclo significava que o impaludismo aparecia menos,
surgia com menor probabilidade, ou era apontado de forma menos segura. Entre
todos os grupos etários e de condição jurídica, a incidência das outras
endemias cresceu ferozmente durante o período considerado. Isso combinou com um
ciclo de febres entre os escravos de todas as idades e entre os adultos livres.
Só se verificou crescimento paralelo, e rápido, dos dois tipos de endemia no
caso das crianças livres.
Nessas
histórias locais, não se tratou de um jogo de soma zero: as outras endemias
continuaram avançando durante o pico da malária. O forte crescimento da
mortalidade pelos outros males quotidianos combinou-se com um surto relativamente
duradouro da mortalidade pelas “febres”, que produziram um ciclo, uma onda
longa, mais que uma crise mais datada. Mas, tendo sido ciclo, declinou.
Acima,
ficou escrito quanto aos adultos cativos de Limeira que um segundo ciclo de
maleita pode ter se iniciado no fim dos anos cinquenta. Para verificá-lo, podem-se
buscar algumas pistas na sazonalidade das mortes por “febre”.
Quanto ao intervalo
1850-1851, a estação de maior concentração foi o outono, o que condiz com a
incidência do impaludismo no fim das chuvas. As mortes por febres de escravos
adultos no outono responderam por 44% do total. O episódio de 1859-1862 foi
totalmente diferente. Entre os 67 casos, a estação de maior incidência foi o
inverno, com 27% do total. O predomínio não foi muito marcado, mas as estações
de menos casos foram o verão e o outono. A primavera, no meio do caminho,
poderia representar o início das chuvas, mas as mortes por febres no inverno
seco parecem muito mais afins à febre tifoide. Esse mal, com o qual a malária
era frequentemente confundida, podia ser favorecido pela oferta reduzida de
água dos períodos secos, aumentando a concentração de patógenos (Earle 1979, 370-371).
É preciso lembrar que
Limeira atravessava com velocidade uma conversão da cana para o café que apenas
de modo limitado ocorreu na renitentemente canavieira Capivari (comparem-se os
verbetes respectivos em Marques 1980, v. 1, 168 e v. 2, 84), e isso merece
discussão a partir de uma outra comparação. Comparando-se a Capivari canavieira
com a Bananal do café, durante os anos 1850, nota-se que as febres predominaram
no verão e no outono em Capivari; já no Vale do Paraíba paulista, apesar da preponderância
das febres de dezembro, ocorria nova concentração de mortes por tal causa em
junho. De fato, o pessoal do café no Rio de Janeiro costumava se orgulhar de
serem infrequentes as “febres intermitentes”, pois o padrão de assentamento
ligado ao cultivo da rubiácea enfatizava gente vivendo e trabalhando sobre
“solo enxuto”, como se dizia em Resende, em 1886, respondendo a um inquérito
sanitário (Carvalho 1990, 147). O ciclo de febres de 1859-1862, comparado aos
anteriores, aponta para contraste semelhante: compara-se um ciclo de “febres”
ocorrido em uma Limeira já bastante cafeeira com outros ocorridos na mesma
Limeira ainda sob a preponderância canavieira.
Foi visto que o trajeto
das “febres” entre os adultos de Limeira que nasceram em liberdade foi
semelhante. No caso deles, igualmente, as febres de 1859 a 1862 incidiram sobretudo
no verão (31%) e no inverno (28%), tendo ficado bem para trás a primavera e o
outono. Observando-se períodos anteriores, as de 1850-1851 foram mais
importantes no inverno (31%), ao passo que as de 1837-1845 – ainda se trata dos
adultos livres – fizeram estragos mesmo no verão e no outono (30% em cada uma
dessas duas estações). Assim, e novamente, o início do processo (1837-1845) foi
marcado por casos palúdicos mais clássicos, transitando o final do mesmo
trajeto, nesse caso de modo mais fluido, para uma situação a sugerir
dissociação entre “febres” e maleita.
Essa situação dos
adultos livres limeirenses faria pensar em deslocamentos entre microambientes
na vila, com passagem dos sítios de eleição da cana para aqueles do café. Mas mudanças
nas práticas podem ter alterado as condições no conjunto da vila. É plausível,
por exemplo, que o impaludismo fosse potencializado por algum tipo de irrigação
praticado no Oeste Paulista. Uma rápida olhada no caso de Capivari dá sugestões
quanto a isso. Segundo um assento desta vila, a 27 de fevereiro de 1867,
“sepultou-se no Cemiterio desta parochia Martinho, achado morto em um rego
d’agua, de trinta e oito annos, solteiro, escravo de Agostinho Pereira da Silva
Magalhães” (São João Batista de
Capivari – Óbitos, 02, 1839 a 1874. Cúria Diocesana de Piracaba,
fl.164; doravante SJBC-O2). De forma análoga, o escravo Felisberto, de 58 anos
de idade, foi encontrado morto em um tanque em 1865 (SJBC-O2, fl.117). Adultos
também morriam afogados em tanques, o que ocorreu com escravos com idades entre
os 16 e os 25 anos em 1853, 1855 e 1857 (SJBC-O2, fl.122, 126v, 132v). Bem mais
dramaticamente, em “dez d’abril de mil oitocentos e cincoenta e hum no bairro
Palmeira precipitou-se em hum tanque voluntariamente Marcelina africana
solteira levando attado a si hum filho de nome Samuel, [...] morrendo ambos
[...]” (SJBC-O2, fl 117). Isso indica a presença, na cana paulista, de esquemas
de irrigação, péssima notícia para quem quer que se preocupasse com o
impaludismo. Em Limeira, a passagem para o café pode ter reduzido a importância
dessas aguadas para a vila toda. Volta-se assim à ideia de processos locais,
mais que àquela de paralelismos dos loci
do impaludismo e dos parasitas vindos da água, do solo ou dos alimentos. Todo
trânsito cana-café implicaria redução dos impactos mórbidos daquelas formas de
retenção e controle de aguadas.
Algumas
palavras ainda são necessárias quanto à redução da importância da malária ao
redor de 1860. Há questões vinculadas à dinâmica interna de cada localidade, ou
à história específica do povoamento de diferentes áreas da fronteira agrária. A
fase ascendente do ciclo da malária pode ser atribuída a um crescimento
necessariamente modesto, mas tangível, da densidade demográfica. Coelho e
McGuire sugeriram isso (Coelho e
McGuire 2000, 235-236). A fase descendente pode ter tido a
ver com o fato de a densidade ter atingido um patamar a partir do qual se
reduzia a disponibilidade de aguadas para a reprodução dos mosquitos. Embora
fazendo referência a período posterior àquele aqui estudado, análises sobre a
província/estado de São Paulo abordando áreas ainda vazias na passagem do
século XIX para o seguinte parecem associar a fraca densidade com a
proliferação de pequenos depósitos de água no solo e com a renitente tortura
representada pela malária (Benchimol e Silva 2008, 723). Esses resíduos eram o tipo de coisa
afetada pela densidade.
Voltando
a fenômenos amplos, dessa vez globais, Hirsch, escrevendo por volta de 1880,
apontou ter havido uma pandemia de maleita na Europa em 1855-1860, seguindo-se
a ela uma grande redução na incidência da doença, conforme lhe pareceu ao
observar os dados desse surto tendo se passado apenas vinte anos desde seu fim
(Hirsch 1883, 229-230). Esse recesso relativo da malária pode ser relacionado a
bruscas mudanças climáticas ocorridas a partir de meados do século. Mas avaliar
a possibilidade de uma pequena era do gelo úmida ter sido sucedida por um
período de secas recorrentes constitui algo que ainda demanda muita pesquisa.[4] Além de serem necessários mais avanços
nessa área sofisticada e complexa de investigação, é difícil ligar esses
fenômenos de enorme escala com o trajeto de doenças como a malária,
muito embora McNeill (2010, 59-60) tenha julgado possível articular a história
da malária e da febre amarela no Caribe com a periodização das oscilações El Niño,
sendo elas mais circunscritas temporalmente, como se sabe. É particularmente arriscado conjuminar
fenômenos globais com a história específica de municípios paulistas.
Microambientes
distintos?
A
abordagem de Coelho e McGuire partiu do suposto de existirem ambientes
diferenciados, espécies de microprovíncias epidemiológicas, dentro do complexo
da fazenda. Aborda-se aqui essa possibilidade de uma maneira diferente, dando
atenção à possível complexidade de cada vila. Isso é realizado através de
referências às pessoas livres que morreram na infância e que haviam sido filhas
de pais aparentemente casados (pois só se contam os casos em que apareciam os
nomes dos dois pais do infante morto), reunindo os óbitos respectivos em grupos
de irmãos falecidos. Se a malária e as outras endemias se concentrassem em
famílias diferentes, ter-se-ia bons motivos para pensar em microambientes
diferentes. Mas o que se passava era que elas apareciam combinadas nos trajetos
de cada grupo, de modo que se tratou mesmo de um percurso executado pelo
conjunto de cada vila. Tenha-se em mente que, em Capivari, a malária matou
cerca de duas vezes e meia mais crianças livres que as outras endemias no
conjunto do período considerado, ao passo que, em Limeira, preponderaram as
outras endemias (sete mortes por essas causas para cada três por impaludismo).
Começando com Capivari,
tem-se que a incerteza é muito grande, em virtude de sub-registro, de mudanças
de nome e de uma provável instabilidade da presença das pessoas na área. Assim,
em quase metade dos 213 casos, só foi possível identificar dois enterros de
crianças por casal, o que é muito pouco.
Nesses casos de apenas
duas crianças sepultadas para cada casal, os dois enterros ocorriam muito
próximos no tempo, sugerindo que pai e mãe passavam pouco tempo usando aquele
nome, ou então que os dramáticos deslocamentos da fronteira agrária só
permitiam enxergá-los de relance. Essa situação acaba aumentando algumas
seguranças. Mesmo tendo sido próximos no tempo os enterramentos de cada filho,
ainda assim os dois tipos de doença abordados tendiam a misturar-se no trajeto
mórbido de cada grupo de pequenos irmãos falecidos.
Dentre 99 casos com
incidência de alguma das endemias dependentes de condições de vida, em apenas
30 não se anotou nenhum irmãozinho morto de malária. Preponderava, assim,
claramente, a combinação ou sucessão das duas doenças em cada família. Não se
tratava de áreas ou atividades separadas no interior da vila. O jogo
malária-outras endemias era mesmo um jogo estruturado temporalmente. Não parece
ter-se tratado de duas situações que convivessem como que em paralelo.
É
bastante arriscado, mas talvez seja possível reconstituir o trajeto mórbido dos
filhos de José de Campos Almeida e Maria Rodrigues Penteado entre 1842 e 1861. Entre
1842 e 1852, perderam seis filhos, um para os vermes e três outros para a malária.
Dos quatro que morreram entre 1853 e 1861, só houve conjetura do vigário sobre
causas em relação a dois, pois os restantes faleceram ainda recém-nascidos (normalmente
sem especulação sobre causas). Os dois cujas mortes se tentou explicar foram
vitimados por lombrigas. O que se entrevê é a combinação de um ciclo (o da
malária) com um atroz crescimento (o das doenças dependentes de condições de
vida). Alguns outros óbitos de anjinhos também parecem ter entristecido essa
família, mas a incerteza é grande demais para que eles sejam levados em
consideração, e se o fossem o quadro não ficaria diferente.
O
caso de Limeira mostra-se até exagerado, pois em pouco mais de metade das 241 situações
analisadas só foi possível identificar o enterro de dois irmãos filhos de cada
um desses núcleos familiares. Repetem-se as suspeitas.
Quanto à tendência a
que os dois tipos de doença aparecessem misturados nos trajetos dos grupos de
irmãos, foi preciso, no caso de Limeira, proceder de modo inverso. Como a
malária foi minoritária no jogo, é preciso medir a possibilidade de que ela
aparecesse sozinha nos trajetos. Como as outras endemias em Capivari, foi rara essa
aparição isolada da doença menos frequente. De 71 trajetos com algum caso de
morte por possível impaludismo, só em 24 não houve também alguma morte causada
por outras endemias. Predominava a conjugação das duas doenças, como na vila
mais nitidamente açucareira. Reforçam-se as conclusões.
Considerações
finais
Tem
sido defendido que o ambiente endêmico preponderava no Brasil rural sobre os
choques vindos do Atlântico. O presente artigo pretendeu avançar na direção de
que esse mesmo ambiente abrigava, no nível local, trajetos relativamente
nítidos executados por tipos específicos de afecção. Isso tudo importa,
primeiramente, porque, em grande medida, o problema da morbidade nas Américas e
no Brasil deve ser visto como questão de tempo e de espaço, como se nota
através de espécies de modelos intervenientes no raciocínio ligado à história
das doenças infecciosas no período. Um deles é o dos choques súbitos vindos de
trânsitos de patógenos e/ou vetores entre regiões afastadas e articuladas como
centros e periferias; nesse caso, o foco costuma estar na varíola. Outro é o do
enraizamento de males de origem distante que viriam a exercer seus efeitos em
áreas novas, como no anterior, mas dessa vez sem choques, e sim como dramas
quotidianos e contínuos; a malária é uma referência quase constante quanto a
isso. Outro ainda é o de afecções que não se enraizavam, por carência de
densidade demográfica, mantendo-se em circuitos que articulavam regiões
distantes mas internas a uma mesma unidade territorial, como no exemplo do
sarampo. Houve também o enraizamento em portos e cidades de males exógenos, demandantes
de aglomeração, produzindo processos eventuais, embora discretos, de difusão
por áreas vazias circundantes, e quanto a isso se pode lembrar a coqueluche. Por
fim, males locais ou importados podiam simplesmente postar-se em situação de
contínua expansão geográfica e de intensificação, de acordo com o alargamento
da mancha da ocupação agrária, especialmente a exportadora, e o que ficou
denominado aqui como endemias dependentes de condições de vida exemplifica afecções
que operavam assim.
O
caso das endemias rurais, assim, compõe dois arranjos temporais diversos, mais
que um trade off. É fato que algumas tendências
à exclusão recíproca foram verificadas nos casos analisados. O avanço cafeeiro,
implicando retração de canaviais, deslocou populações dentro de Limeira,
substituindo a imersão em ambientes palúdicos pelo contato com solos secos que
estimulavam outro tipo de morbidade. Mas os dados indicaram que passagens de um
mal a outro, como doença preponderante, ocorriam mesmo sem mudanças de
atividade (como o notado para Capivari). Nessa superposição de dinâmicas, o
forte avanço das endemias dependentes de condições de vida operou como na
discussão de Palmer sobre a ancilostomíase.
Embora
o trânsito entre atividades tenha afetado a questão em Limeira, especialmente
no sentido de ter alterado o significado da expressão “febre”, não se tratou,
aparentemente, de problema da coexistência de espaços diferenciados no interior
das vilas. Deu-se, isso sim, o caso de dois tipos de doença cujos impactos se
desdobraram em duas temporalidades diferentes, uma delas expressa sob a forma
de um ciclo relativamente longo e a outra como um processo contínuo de
crescimento.
Incêndios
recorrentes não constituem uma boa imagem para comunicar a triste história dos
males rurais a que estavam sujeitas as populações da época. Um lodaçal expansivo
– e com marola – comunica melhor sua situação. O que fica sugerido pelos dados
é uma história de enraizamento de elementos atlânticos, ao lado da preservação e
potencialização dos locais, consolidando-se interações regulares desses elementos
com o ambiente e com as relações e atividades sociais. É análogo ao que se
descreve, em relação a escravos, com o termo crioulização, fazendo referência à passagem de uma “tradição do
Mundo Antigo para uma nova tradição” (Price 2003, 409). Práticas e traços de
diversas procedências (inclusive africanos) encontram nas situações locais
processos de reelaboração e recomposição, entrando em combinações cuja
compreensão demanda atenção ao ponto de chegada, ou seja, às próprias sociedades
onde tudo isso estava acontecendo. É por essa razão que teve importância no raciocínio
a observação de que operavam trajetos legíveis, portanto regulares, da
incidência de males endêmicos, levada em conta sua enorme e trágica importância.
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[1] Quanto a
Capivari, há muita informação em Melo (2009). Quanto à passagem do açúcar ao
café ver Dean (1977, 45), que informa muito sobre Limeira. Os clássicos
decisivos sobre a fronteira agrária paulista na passagem do século XVIII para o
XIX são Marcílio (2000, cap. 9) e Luna e Klein (2005, cap. 2). Avança-se mais
no século XIX com Motta (2012, 50-53, 136-151).
[2] Foram levantados 1705 registros de óbito de escravos
(1817-1865) relativos a Bananal, 799 de escravos e 2448 de livres (1839-1859)
no tocante a Rio Claro, 206 de cativos e 1083 de livres (1855-1874) para Mogi
Guaçu, 206 de escravos (1861-1865) e 264 de livres (1861-1866) no que toca a
Santa Cruz, 1260 de cativos e 2673 de livres (1833-1862) em Limeira e 2665 de
cativos (1820-1870), assim como 2122 de livres (1820-1861) no caso de Capivari.
Grande parte desses registros (mais de um terço) não pôde ser usada, o que se
deveu às razões já expostas.
[3] A julgar-se pelo já sabido sobre período posterior, o
avanço cafeeiro e a “maturação” em Rio claro, as décadas de 1870 e 1880 teriam
inaugurado, para as crianças escravas, fortíssima prevalência dos vermes e das
moléstias gastrointestinais, com substancial redução da importância da malária (Zero
2004, 114).
[4] Ver Boninsegna et al. (2009, 217) e Jomelli et al. (2009). A
pequena era do gelo (LIA – meados do século XV a meados do século XIX) como
período seco no Nordeste brasileiro, mantida a secura até o inicio do século
XX, aparece em Zocatelli et al. (2012, 133) e em Novello et al. (2012).
Variações quanto à precipitação, com sítios sugerindo maior pluviosidade
durante a LIA, enquanto outros indicam o contrário, são ressaltados em Rodrigues
et al. (2016, 63). Um “dry/wet dipole was formed between Southeastern and
Northeastern Brazil” foi uma das tendências que Bernal e outros encontraram na
bibliografia (Bernal et al. 2016, 194). Ênfase relativamente grande em
resultados inversos da pequena era do gelo nos hemisférios norte e sul aparece
em Souto et al. (2011, 49). Oliveira et al. (2014, 238) chegam a supor redução da
precipitação durante a pequena era do gelo nas áreas litorâneas do Nordeste e
do Sudeste, o que levaria a imaginar maior pluviosidade após o seu fim.
Análises sobre partes mais meridionais indicam umidade crescente ao longo dos últimos
mil anos, sem muitas indicações de algum intervalo seco mais duradouro (Jeske-Pieruschka
e Behling 2011, 1260). Sendo tão difícil assim formar uma imagem geral a
respeito do que passava com a precipitação no Brasil ao fim da pequena era do
gelo, muito mais difícil seria imaginar o que se passou no período em
localidades específicas.

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