artigo


Dinâmicas superpostas da malária e das endemias dependentes de condições de vida no Sudeste brasileiro do século XIX

Por Carlos Alberto Medeiros Lima
(UFPR / CNPq)
carlima3@gmail.com

Rio de Janeiro, abril de 2018


Neste artigo analisa-se a evolução da incidência da malária e de um grupo de afecções formado pela disenteria, as diarreias, a gastroenterite e as verminoses em algumas vilas rurais do Sudeste brasileiro, assim como na seção rural da cidade do Rio de Janeiro ao longo do segundo terço do século XIX. Tomam-se em consideração registros paroquiais de óbitos de livres e escravos agrupados segundo as idades e condições dos falecidos. Reúnem-se indicações de que a incidência do segundo grupo de moléstias teve um ritmo de crescimento muito mais rápido que o da população. A incidência da malária, diversamente, executou um ciclo. Os dois processos são vistos como o resultado do desenvolvimento da agricultura de exportação e do crescimento da população. O exame dos óbitos de grupos de irmãos livres mostra que os dois tipos de causa realmente se conjugavam no interior de trajetos familiares, não constituindo fenômenos próprios de nichos diferentes no interior de cada vila.
Palavras chave: morbidade livre e escrava – Sudeste brasileiro, século XIX – malária – ancilostomíase

Dinámicas superpuestas de la malaria y de las endemías dependientes de condiciones de vida en el Sureste brasileño del siglo XIX

En el artículo se analiza la evolución de la incidencia de la malaria y de un grupo de afecciones formado por la disentería, las diarreas, la gastroenteritis y las verminosis en algunas villas rurales del Sureste brasileño y en la sección rural de la ciudad de Rio de Janeiro durante el segundo tercio del siglo XIX. Tomase en consideración registros parroquiales de defunción de esclavos y libres, agrupándose los registros en acuerdo a las edades y condiciones de los fallecidos. Se reúnen indicaciones de que la incidencia del segundo grupo de afecciones tuvo un ritmo de crecimiento mucho más rápido que el de la población. La incidencia de la malaria, diversamente, ejecutó un ciclo. Los dos procesos son vistos como resultados del desarrollo de la agricultura de exportación y del crecimiento de la población. El examen de los óbitos de grupos de hermanos libres muestra que los dos tipos de causa realmente se conyugaban en el interior de trayectos familiares, no constituyendo fenómenos propios de locales diferentes en el interior de cada villa.
Palabras clave: morbilidad esclava y libre – Sureste brasileño en el siglo XIX – malaria – anquilostomiasis

Superimposed dynamics of malaria and of diseases related to living conditions in Brazilian Southeast (XIXth century)

In this article I analyze the evolution of the incidence of malaria and of a group of diseases constituted of dysentery, diarrhea, gastroenteritis and worm infections in rural villages of Brazilian Southeast and in the rural section of the city of Rio de Janeiro during the second third of the nineteenth century. I use burial records of slaves and free people, classifying them according to the ages and conditions of the deceased. Information is gathered on the enhanced incidence of the second group of diseases, noting that this incidence grew faster than local populations. The incidence of malaria, on the other hand, performed a cycle. Both processes are seen as results of the development of export-oriented agriculture and of population growth. The examination of burials of members of groups of siblings shows that both types of disease appeared together or consecutively inside each of these family histories. They didn’t perform as if they were attached to different parts of each village.
Key words: slave and free morbidity – Brazilian Southeast during the XIXth century– malaria – anchilostomiasis

Introdução
            Este artigo aborda a dinâmica, no século XIX, de dois tipos de endemia rural no Sudeste brasileiro. Usa para tanto registros de óbito de livres e escravos, partindo de considerações extraídas de uma controvérsia a respeito da altura de escravos norte-americanos.
Há tempos debatem-se os trabalhos de Steckel sobre a altura de crianças escravas nos Estados Unidos do século XIX. A ênfase que pôs em questões nutricionais foi criticada por Coelho e McGuire, partidários de respostas vinculadas à morbidade. A solução dos problemas implicados é difícil, graças ao peso posto por Steckel no crescimento de púberes, capaz de superar a defasagem entre as alturas de crianças livres e escravas (catch-up growth). Ainda assim, no decorrer dos debates Coelho e McGuire produziram um relato sobre doenças de livres e escravos em plantations norte-americanas que pode ser esclarecedor em relação a alguns processos entrevistos na documentação sobre o Sudeste brasileiro (Coelho e McGuire 2000; Coelho e McGuire 1999; Steckel 1985; Steckel 2000; Steckel 1986).
Ancilóstomos e plasmódios teriam sido os patógenos mais frequentes nas plantations. Quanto a escravos, havia o malsão ambiente das enfermarias (nurseries) onde se concentravam as crianças, em comparação com o qual até os campos onde trabalhavam adultos eram salubres, dadas suas imunidades à malária, que não impediam fortíssimas incidências entre crianças.
Quanto a livres, a infância era marcada por ambientes mais salubres que os campos. Eram menos doentios que as enfermarias. Por outro lado, quando os nascidos em liberdade passavam a frequentar, já adultos, as áreas cultivadas, começavam a enfrentar forte insalubridade. Assim, a infância livre era mais saudável que a escrava, enquanto a idade adulta dos cativos era menos malsã que a dos nascidos em liberdade. Assim as passagens para a vida adulta de cativos e livres significavam movimentos inversos no tocante aos contatos com a insalubridade. Recorde-se que estão discutindo ideias de Steckel sobre as grandes diferenças notadas no início da vida das crianças escravas em relação às livres reduzirem-se substancialmente quando se tratava dos adultos das duas condições jurídicas, o que leva a supor elevado crescimento dos escravos púberes. Mas o que de modo mais circunscrito interessa à feitura do presente trabalho é a ideia, subjacente ao raciocínio de Coelho e McGuire, de que a malária e a ancilostomíase tinham movimentos inversos e coordenados na vida dos cativos e dos livres (Coelho e McGuire 1999, 152-153).
            Teria havido uma espécie de exclusão recíproca entre a malária e os vermes, governado o trade off pelo microambiente preferencialmente frequentado por grupos etários e de condição jurídica no interior do complexo da fazenda. Isso significa que esses tipos de doença, ambos de corte ambiental, como que se excluiriam, especializando-se em microambientes distintos. Significa, como decorrência, que as experiências que conduziam a elas eram específicas de faixas etárias.
            É importante dar atenção à adequação, tratando-se de análises de áreas rurais, da ênfase posta em doenças que implicam mais a relação com elementos do ambiente – mosquitos, o chão onde vermes aguardavam seus novos hospedeiros, a água – do que a transmissão de pessoa a pessoa ou o impacto de acontecimentos atlânticos. É muito significativa a ênfase posta por Coelho e McGuire em endemias rurais, mesmo que abordem a dinâmica norte-americana, sabendo-se que o Sul escravista anterior à Guerra de Secessão enfrentou a dramática chegada das pandemias do século XIX já desde os anos 1830, época na qual o cólera fez grandes estragos entre os cativos. Essa ênfase deve ser ainda mais decidida no caso brasileiro, pois o Império esteve livre das pandemias oitocentistas durante toda a primeira metade do século (sobre a chegada do cólera ao Rio de Janeiro, ver Kodama et al. 2012). Realmente, estudos que abordam a morbidade no Sudeste e em outras partes da Colônia e do Império vêm pondo acento nas endemias rurais e na preponderância endêmica entre os males urbanos (Reis 1991, 36; Barbosa e Gomes 2008).
            Em muitas áreas de investigação substitui-se a ênfase excessiva em choques atlânticos súbitos pelo foco em endemias rurais mais discretas, mas igualmente ou ainda mais destrutivas, como se lê em trabalhos de Livi Bacci (2007, 145-146) e Cook (1998, 134-135) sobre as Américas, do mesmo modo que nas apreciações de Hemming (2009, 289) sobre a passagem, na Amazônia de ca. 1800, das crises da varíola para a mortalidade constantemente alta provocada pela malária. Isso se manifesta na precisa ênfase de Marcílio (1984, 193-207) no problema do hábitat, mesmo que sua análise se aplique mais a livres que a escravos rurais, assim como na análise de Gurgel (2010, 39-41) sobre as parasitoses “brasilíndias”.
Fontes e limites da abordagem
            Neste trabalho, examinam-se questões correlatas quanto ao Sudeste brasileiro nos anos centrais do século XIX. Primeiramente, considerar-se-ão diversos municípios que só podem ser abordados de maneira estática, para, posteriormente, compararem-se de modo um pouco mais detido duas localidades do Oeste Paulista, então claramente uma fronteira agrária expansiva.[1] Esses dois municípios são Limeira e Capivari, sobre os quais um pouco mais de detalhe será veiculado adiante.
            Conhecem-se as dificuldades de trabalhar com atribuições de causas de morte pelos párocos do século XIX. Supõe-se útil considerar que os registros não apontam para a história da doença ou dos doentes. Elas indicam, sobretudo, as condições sanitárias da localidade, assim como essas condições (os sintomas preponderantemente vistos nas pessoas) eram interpretados com as categorias do período. Sugerem que um dado sintoma era muito importante e difundido, permitindo entrever mudanças quanto a isso. Essa avaliação global sobre as condições locais, com todas as suas distorções, provavelmente intervinha com muita força a cada vez que padres, vizinhos e familiares atribuíam uma causa a uma morte. Além disso, há o enorme problema do sub-registro, que torna impossível propor taxas de mortalidade. É tentador, por exemplo (mas não deve ser feito), notar que a participação dos óbitos de escravos no total dos falecimentos era proporcionalmente maior que sua participação na população. Só o fato de que isso é mais ou menos óbvio daria alguma segurança. Por outro lado, se é impossível saber qual é o viés introduzido pelo sub-registro no movimento de registros, não há nenhuma razão para supor ter havido algum enviezamento no tocante às causas atribuídas, inexistindo motivos para supor que algumas causas teriam mais chances que outras de escapar do sub-registro.
            Neste artigo considerar-se-ão as mortes atribuídas a apenas algumas causas, agrupando-as em dois tipos, em vista de seu objetivo de observar a evolução das endemias rurais. De um lado, recortam-se, isoladamente, os óbitos por “febres”, propondo-se que a classificação indicava a malária (a maior parte das mortes por “febres”, durante a maior parte do tempo, associou-se ao impaludismo; ainda assim, essa associação é proposta apenas em um primeiro momento, pois adiante serão apontadas exceções e mudanças nesse quadro). De outro lado, uma segunda categoria agrupa males frequentemente separados por analistas, lidando com eles como sinais de um conjunto de outras endemias, tornadas contíguas por fazerem referência a vermes não especificados, lombrigas, ancilóstomos (indiretamente, por intermédio da atribuição de várias mortes, especialmente de adultos, à hidropisia, conforme, entre outros, Edler 2004), ou então à diarreia, à disenteria ou à gastroenterite. Da mesma forma que em relação à malária, havia uma raiz ambiental nesses padecimentos. Diferentemente do impaludismo, eles se caracterizavam pela coleta direta de patógenos na água ou no solo, em estreita dependência das condições de vida (calçados, roupa, a água a que se tinha acesso, o estado dos alimentos etc.). Os mosquitos que funcionavam como vetores da maleita, diversamente, não respeitavam dado algum de condições de vida. Eles definitivamente não ligavam para classe social.
            A imprecisão de ambos os agrupamentos é óbvia. O termo “febre” agrupava possibilidades demais, inclusive por ter sido frequente a confusão entre a malária e a febre tifoide. Mas é útil a hipótese de que apontava para a malária nos casos estudados, ao menos como ponto de partida. Quanto às endemias mais dependentes de condições de vida, diversamente, as doenças incluídas diferiam muito, e vermes, hidropisia, diarreia, disenteria e gastroenterite constituíam “causas” que se tentava separar, provavelmente sem muito sucesso em todas as ocasiões. Os responsáveis pelos registros deviam fazer confusões entre os diversos membros do conjunto. Unia-as o fato de seus patógenos serem apanhadas no chão ou na água, ou ainda em alimentos. Isso as separava das “febres”, embora tenha que permanecer como problema o fato de estas últimas poderem ter tido um componente importante de febre tifoide, mais parecida com o grupo água-chão-alimentos que com o grupo mosquitos.
Uma primeira abordagem, estática, e a impressão de trade off
            Acima mencionou-se que a síntese de Coelho e McGuire dá ideias para ajustar contas com processos entrevistos no Sudeste brasileiro, o que se tenta verificar agora, em alguma medida. Adiante serão vistos dois casos em relação aos quais a abordagem poderá ser mais dinâmica. Neste passo, abordam-se casos que só puderam ser observados em períodos circunscritos, o que se deveu à necessidade de computar apenas causas de morte nos locais e períodos em que elas estivessem disponíveis de forma relativamente regular para anos inteiros, por necessitar-se impedir que as lacunas de informação, interagindo com a sazonalidade de alguns males, deturpassem a observação.[2] Ainda assim, nesse nível, notam-se algumas formas muito bruscas de alternância entre um e outro tipo de mal. Por vezes, um determinado grupo de faixa etária e condição jurídica transitava do predomínio da malária, em dada época, para uma situação de forte suscetibilidade às outras endemias, em outro intervalo, reduzindo-se a incidência do impaludismo. Isso mostra que a adesão de determinadas doenças a faixas etárias específicas não era constante.
Segue-se o gráfico 1, agrupando informações sobre áreas que só se pôde sujeitar a observação descontínua. Separaram-se os óbitos de livres (mais libertos) e escravos, primeiramente. Em segundo lugar, foram observadas separadamente duas grandes faixas etárias, sendo a primeira a de crianças com menos que quinze anos e a segunda, de adultos (15 ou mais anos de idade, com idosos incluídos). Quanto às idades, os escravos de Bananal constituíram exceção, pois, por haver muitos anos durante os quais que as pessoas só eram classificadas como “inocentes” ou “adultas”, com separação na casa dos sete anos de idade, a classificação usada neste trabalho precisou proceder da mesma forma. Isso incomoda, mas não é preocupante, pois a proporção dos mortos com idades entre os sete e os quinze devia ser bem pequena.

Fontes: Cúria Diocesana de Lorena: Óbitos – Bananal, livro 1; Óbitos – Bananal, livro 2, Cúria Diocesana de Piracicaba: Livro 1 – óbitos – São João Batista de Rio Claro – 1830-1842; Paróquia de Nossa Senhora da Conceição do Campo de Mogi Guaçu: Óbitos de brancos, libertos e captivos; Curato de Santa Cruz: Livro de encomendação – livro III, 1864-1878; 1861-1878; Livro de encomendação – livro I. Elaboração própria.

            O curato de Santa Cruz correspondia a parte importante do Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Era marcado pela antiga fazenda de Santa Cruz, primeiro dos jesuítas e depois do Estado colonial/imperial. A população escrava e a certamente grande população negra livre local estavam envolvidas em esquemas de abastecimento da Corte. Mogi Guaçu, apesar de tardiamente, tinha seus recursos cada vez mais envolvidos com a lavoura cafeeira. Rio Claro na virada da década de 1830 para seguinte era ainda área de fronteira canavieira, apesar de, segundo Dean (1977, 45), ter iniciado trânsito para o café na época da Independência. Bananal, por fim, reteve durante a primeira metade do século XIX verdadeira exemplaridade enquanto vila cafeeira do Vale do Paraíba paulista (Motta 1999).
            Entre os escravos de Bananal, por exemplo, a malária parecia predominar amplamente ao redor de 1820, no caso infantil tanto quanto no adulto. Mas a situação se inverteu bruscamente nos anos 1850, com nítida preponderância – também nos dois casos – de males derivados do contato com a água inadequada e com os vermes. Em Rio Claro, ao redor de 1840, as situações das crianças livres e escravas eram inversas: as cativas eram mais vitimadas pela malária; as livres, pelas outras endemias.[3] Adultos das duas condições sofriam mais frequentemente pelas febres. Mogi Guaçu, no que tocava a crianças, era o palco das outras endemias, mais que da malária. Essa situação infantil de semelhança de destinos de livres e escravos invertia-se quando se passava para os adultos: escravos eram mais afetados por hidropisia, disenteria e similares, ao passo que livres tinham no impaludismo um algoz importante. Desempenhos contrapostos, conforme a condição jurídica, apareciam entre as crianças de Santa Cruz, enquanto os adultos eram mais vitimados pela hidropisia e pelas diarreias, não importando sua condição jurídica.
            Esses resultados afastam o raciocínio da ideia de que, em uma dada região, as experiências de uma faixa etária – fosse livre, fosse escrava – eram constantes, reguladas por um modo de vida específico. Os destinos das crianças, por exemplo, variavam no tempo. Assim, as conjeturas do analista devem voltar-se mais para diferenças entre localidades no interior desse conjunto que era muito marcado pela agroexportação, com poucas exceções. Deve-se tratar da história particular de cada localidade, de trajetos infrarregionais, dadas as mudanças verificadas na comparação entre momentos específicos.
            Note-se que os dois grupos de doenças considerados matavam muito. Entre crianças livres e escravas, eles causavam ao redor de metade do total, às vezes bastante mais que isso. Entre adultos, a proporção afetada por tais males girava ao redor de um terço. Isso era muita coisa, e corrobora o que ficou mencionado acima sobre a preponderância endêmica até mesmo em áreas muito marcadas por migrações e pelo tráfico africano.
Malária e outras endemias em Capivari e Limeira
            A comparação de diversas áreas do Sudeste feita acima deixou com duas possibilidades. Pode ter se tratado de um fenômeno de exclusão recíproca das endemias que dependiam e das que não dependiam de mosquitos como vetores, o que certamente se enraizaria nos requisitos ambientais de cada uma delas. Por outro lado, pode ter se dado, muito simplesmente, uma situação de dinâmicas diversas superpostas, sendo esta a possibilidade mais plausível. Segundo ela, ter-se-ia tratado de trajetos de formatos diferentes executados pela variação, no tempo, da importância nos óbitos dos dois tipos de afecção.
Para verificá-lo, como foi indicado, analisam-se casos com informação suficiente para permitir uma visada mais dinâmica. Mantêm-se as febres isoladas como indicadoras da malária e, sob a rubrica das “outras endemias”, continuam a reunir-se as incidências dos vermes, da disenteria, da diarreia, da gastroenterite e da hidropisia (tabela 1). Note-se que, em virtude de uma série de elementos, expõem-se na tabela 1 dados relativos a períodos diferentes, às vezes até mesmo recortando intervalos diferentes para grupos diversos no interior de uma mesma vila. Isso se deve aos pontos de partida diversos da observação de cada local. Deve-se igualmente à disponibilidade diferencial, conforme a vila e de acordo com o grupo etário e de condição jurídica no interior de cada uma delas, de informação com qualidade um pouco maior a respeito das causas supostas de morte (lembre-se que, para cada grupo, foram descartados os anos inteiros que contivessem falhas na cobertura, mesmo que essas falhas se referissem a apenas alguns meses). Deve-se também, por fim, à escolha de expor os resultados da análise recortando o auge do ciclo da malária a que se fará referência a seguir, e o impacto desse ciclo nos registros diferiu de acordo com o local e com o grupo abordado.


Tabela 1
Malária e endemias dependentes de condições de vida em Capivari (1821-1869) e Limeira (1837-1862) – média anual das mortes pelos dois grupos de causas e relação entre as médias

Capivari
Crianças escravas
Período
A – Malária
B – outras endemias
A / B
1821-1828
0,9
1,5
0,6
1840-1860
18,5
5,5
3,3
1861-1869
13,0
17,6
0,7
Crianças livres
Período
A – Malária
B – outras endemias
A / B
1825-1836*
0,7
4,2
0,2
1839-1855
19,4
6,9
2,8
1856-1861
31,2
11,8
2,6
Escravos adultos
Período
A – Malária
B – outras endemias
A / B
1821-1828
1,4
0,9
1,6
1840-1860
3,6
10,9
0,3
1861-1869
2,4
17,3
0,1
Adultos livres
Período
A – Malária
B – outras endemias
A / B
1825-1836*
0,3
2,7
0,1
1839-1855
2,4
8,5
0,3
1856-1861
2,2
10,3
0,2

Limeira
Crianças escravas
Período
A – Malária
B – outras endemias
A / B
1837-45
1,8
8,2
0,2




1852-58
2,9
12,4
0,2
1859-62
5,0
26,5
0,2
Crianças livres
Período
A – Malária
B – outras endemias
A / B
1837-45
4,8
1,0
4,8




1852-58
9,7
32,6
0,3
1859-62
21,0
51,8
0,4
Escravos adultos
Período
A – Malária
B – outras endemias
A / B
1837-45
3,1
1,6
1,9
1850-51
8,0
1,5
5,3
1852-58
2,1
5,0
0,4
1859-62
16,8
8,3
2,0
Adultos livres
Período
A – Malária
B – outras endemias
A / B
1837-45
4,1
4,1
1,0
1850-51
8,0
7,5
1,1
1852-58
3,9
8,9
0,4
1859-62
9,0
10,3
0,9
* Anos de 1825, 1829, 1832, 1834, 1835 e 1836.
Fontes: Cúria Diocesana de Piracicaba: São João Batista de Capivari – Óbitos – livro 1; São João Batista de Capivari – Óbitos – livro 2; Cúria Diocesana de Limeira: Parochia Limeira – Livro nº 1 – Obitos 1833-março – 1843-julho; Livro segundo 2º de Obitos de 1843 á 1849; Livro 3 terceiro de Obitos. De 1849 á 1858; Livro 4º de Obitos de 1858 á 1860; Livro 5 de Obitos. De 1860 á 1864. Elaboração própria.

Entre crianças de qualquer condição jurídica, o ambiente de Capivari produzia bastante mais casos de malária que de outras endemias, ao passo que em Limeira as outras endemias predominaram, no cômputo total, sobre a maleita. Entre adultos de qualquer condição, as coisas quase se invertiam. Em Capivari, preponderava o conjunto das outras endemias. Em Limeira, a tendência era a números mais equilibrados dos dois tipos de doença, com oscilações. A importância da malária em Capivari que em Limeira pode ser explicada pela prevalência da cana de açúcar na primeira vila. Inicialmente, o produto também preponderava em Limeira, mas ocorreu ali, sem paralelos em Capivari, uma transição para o café durante o intervalo estudado.
            A interpretação dos dados requer que se leve em conta a evolução da população nos dois locais. A população cativa de Capivari quase dobrou entre 1836 e 1872 (de 1740 para 3189 cativos). A parcela livre quase triplicou no mesmo intervalo (de 1697 para 5008). Em Limeira, os escravos passaram de pouco menos de 1600, em meados da década de 1840, para 3054 em 1872, e assim também chegaram perto de dobrar de número. O contingente livre, de cerca de 3700 pessoas em meados dos anos 1840, alcançou 11229 por ocasião do primeiro recenseamento geral do Império. Note-se que as populações livre e escrava de Limeira cresceram um pouco mais rapidamente que a de Capivari (Recenseamento do Brazil em 1872 – São Paulo, 316, 364; Müller 1978, 140; Maços de população – “S/ data Piracicaba”, Arquivo Público do Estado de São Paulo).
No período analisado, por outro lado, o sepultamento de crianças cativas mortas pelas “outras endemias” cresceu contínua e avassaladoramente nos dois lugares, ultrapassando francamente o avanço da população escrava. Em Capivari, a incidência da malária entre esses escravinhos realizou um ciclo nítido, conforme já foi apontado. Uma reta de avanço contínuo descreve a incidência das outras endemias. Uma parábola descreve a da malária. Mais outras endemias que febres no início do intervalo observado; inversão, no sentido de mais febres que “outros” no meio da observação; novamente mais endemias diversas que malária ao final do período. O número médio de mortes por outras endemias cresceu bem mais que a população escrava de Capivari. O caso das crianças cativas de Limeira foi diferente, mas isso não chega a invalidar a observação. Nesse caso, os dois tipos de doença cresceram em paralelo.
            No tocante aos cativos adultos da vila que permaneceu canavieira, as “febres” estiveram preponderantes no início da observação. Cederam depois às outras endemias, irreversivelmente. Embora não tanto quanto entre as crianças escravas, as outras endemias avançaram bem mais que a população escrava de Capivari. Em Limeira, entrevê-se a mesma curva de avanço quase contínuo das outras endemias e o mesmo ciclo da malária. Parece, no entanto, ter havido um retorno do impaludismo no fim dos anos 1850. Adiante se voltará a isso.
            Entre crianças livres (Capivari), o trajeto começou com o predomínio das outras endemias sobre a malária, com inversão subsequente e sem retorno, mas tendo ocorrido amenização do crescimento da importância das febres nos últimos anos considerados. A quantidade de mortes por outras endemias avançou mais ou menos ao ritmo do crescimento da população. A de falecimentos por paludismo avançou bem mais que a população livre. Apesar da amenização do ritmo do avanço dessa última doença em Capivari, o crescimento enquanto tal permaneceu tremendamente grande até 1861. Limeira foi palco de coisa bem diferente. A importância da malária sempre cresceu, mas as outras endemias avançaram muito mais.
            Entre os adultos livres de Capivari, as outras endemias sempre predominaram, crescendo quase continuamente. Ademais, o movimento executado pelas febres foi semelhante ao visto entre os escravos adultos, tendendo a ceder. Como no caso das crianças de mesma condição, a incidência das febres se reduziu no final, sem que jamais tenha preponderado sobre as outras endemias entre os adultos dessa condição jurídica. Mas a malária avançou menos que a população, diferentemente das outras endemias. Entre os adultos de Limeira nascidos em liberdade, os movimentos foram semelhantes aos observados quanto aos cativos adultos locais.
            Em alguma medida se vê nos dados a linha ascendente das outras endemias, o que concorda com as análises de Palmer sobre a relação entre a ancilostomíase e a expansão agroexportadora: “Inspired by recent historical explorations of disease ecologies, I connect increasing incidences of serious hookworm disease with the growth of frontier development, plantation agriculture, and labour migration” (Palmer 2009, 678).
Já a malária foi vista executando um ciclo, ou então amenizando, no final, uma trajetória de crescimento. O final desse ciclo significava que o impaludismo aparecia menos, surgia com menor probabilidade, ou era apontado de forma menos segura. Entre todos os grupos etários e de condição jurídica, a incidência das outras endemias cresceu ferozmente durante o período considerado. Isso combinou com um ciclo de febres entre os escravos de todas as idades e entre os adultos livres. Só se verificou crescimento paralelo, e rápido, dos dois tipos de endemia no caso das crianças livres.
            Nessas histórias locais, não se tratou de um jogo de soma zero: as outras endemias continuaram avançando durante o pico da malária. O forte crescimento da mortalidade pelos outros males quotidianos combinou-se com um surto relativamente duradouro da mortalidade pelas “febres”, que produziram um ciclo, uma onda longa, mais que uma crise mais datada. Mas, tendo sido ciclo, declinou.
            Acima, ficou escrito quanto aos adultos cativos de Limeira que um segundo ciclo de maleita pode ter se iniciado no fim dos anos cinquenta. Para verificá-lo, podem-se buscar algumas pistas na sazonalidade das mortes por “febre”.
Quanto ao intervalo 1850-1851, a estação de maior concentração foi o outono, o que condiz com a incidência do impaludismo no fim das chuvas. As mortes por febres de escravos adultos no outono responderam por 44% do total. O episódio de 1859-1862 foi totalmente diferente. Entre os 67 casos, a estação de maior incidência foi o inverno, com 27% do total. O predomínio não foi muito marcado, mas as estações de menos casos foram o verão e o outono. A primavera, no meio do caminho, poderia representar o início das chuvas, mas as mortes por febres no inverno seco parecem muito mais afins à febre tifoide. Esse mal, com o qual a malária era frequentemente confundida, podia ser favorecido pela oferta reduzida de água dos períodos secos, aumentando a concentração de patógenos (Earle 1979, 370-371).
É preciso lembrar que Limeira atravessava com velocidade uma conversão da cana para o café que apenas de modo limitado ocorreu na renitentemente canavieira Capivari (comparem-se os verbetes respectivos em Marques 1980, v. 1, 168 e v. 2, 84), e isso merece discussão a partir de uma outra comparação. Comparando-se a Capivari canavieira com a Bananal do café, durante os anos 1850, nota-se que as febres predominaram no verão e no outono em Capivari; já no Vale do Paraíba paulista, apesar da preponderância das febres de dezembro, ocorria nova concentração de mortes por tal causa em junho. De fato, o pessoal do café no Rio de Janeiro costumava se orgulhar de serem infrequentes as “febres intermitentes”, pois o padrão de assentamento ligado ao cultivo da rubiácea enfatizava gente vivendo e trabalhando sobre “solo enxuto”, como se dizia em Resende, em 1886, respondendo a um inquérito sanitário (Carvalho 1990, 147). O ciclo de febres de 1859-1862, comparado aos anteriores, aponta para contraste semelhante: compara-se um ciclo de “febres” ocorrido em uma Limeira já bastante cafeeira com outros ocorridos na mesma Limeira ainda sob a preponderância canavieira.
Foi visto que o trajeto das “febres” entre os adultos de Limeira que nasceram em liberdade foi semelhante. No caso deles, igualmente, as febres de 1859 a 1862 incidiram sobretudo no verão (31%) e no inverno (28%), tendo ficado bem para trás a primavera e o outono. Observando-se períodos anteriores, as de 1850-1851 foram mais importantes no inverno (31%), ao passo que as de 1837-1845 – ainda se trata dos adultos livres – fizeram estragos mesmo no verão e no outono (30% em cada uma dessas duas estações). Assim, e novamente, o início do processo (1837-1845) foi marcado por casos palúdicos mais clássicos, transitando o final do mesmo trajeto, nesse caso de modo mais fluido, para uma situação a sugerir dissociação entre “febres” e maleita.
Essa situação dos adultos livres limeirenses faria pensar em deslocamentos entre microambientes na vila, com passagem dos sítios de eleição da cana para aqueles do café. Mas mudanças nas práticas podem ter alterado as condições no conjunto da vila. É plausível, por exemplo, que o impaludismo fosse potencializado por algum tipo de irrigação praticado no Oeste Paulista. Uma rápida olhada no caso de Capivari dá sugestões quanto a isso. Segundo um assento desta vila, a 27 de fevereiro de 1867, “sepultou-se no Cemiterio desta parochia Martinho, achado morto em um rego d’agua, de trinta e oito annos, solteiro, escravo de Agostinho Pereira da Silva Magalhães” (São João Batista de Capivari – Óbitos, 02, 1839 a 1874. Cúria Diocesana de Piracaba, fl.164; doravante SJBC-O2). De forma análoga, o escravo Felisberto, de 58 anos de idade, foi encontrado morto em um tanque em 1865 (SJBC-O2, fl.117). Adultos também morriam afogados em tanques, o que ocorreu com escravos com idades entre os 16 e os 25 anos em 1853, 1855 e 1857 (SJBC-O2, fl.122, 126v, 132v). Bem mais dramaticamente, em “dez d’abril de mil oitocentos e cincoenta e hum no bairro Palmeira precipitou-se em hum tanque voluntariamente Marcelina africana solteira levando attado a si hum filho de nome Samuel, [...] morrendo ambos [...]” (SJBC-O2, fl 117). Isso indica a presença, na cana paulista, de esquemas de irrigação, péssima notícia para quem quer que se preocupasse com o impaludismo. Em Limeira, a passagem para o café pode ter reduzido a importância dessas aguadas para a vila toda. Volta-se assim à ideia de processos locais, mais que àquela de paralelismos dos loci do impaludismo e dos parasitas vindos da água, do solo ou dos alimentos. Todo trânsito cana-café implicaria redução dos impactos mórbidos daquelas formas de retenção e controle de aguadas.
            Algumas palavras ainda são necessárias quanto à redução da importância da malária ao redor de 1860. Há questões vinculadas à dinâmica interna de cada localidade, ou à história específica do povoamento de diferentes áreas da fronteira agrária. A fase ascendente do ciclo da malária pode ser atribuída a um crescimento necessariamente modesto, mas tangível, da densidade demográfica. Coelho e McGuire sugeriram isso (Coelho e McGuire 2000, 235-236). A fase descendente pode ter tido a ver com o fato de a densidade ter atingido um patamar a partir do qual se reduzia a disponibilidade de aguadas para a reprodução dos mosquitos. Embora fazendo referência a período posterior àquele aqui estudado, análises sobre a província/estado de São Paulo abordando áreas ainda vazias na passagem do século XIX para o seguinte parecem associar a fraca densidade com a proliferação de pequenos depósitos de água no solo e com a renitente tortura representada pela malária (Benchimol e Silva 2008, 723). Esses resíduos eram o tipo de coisa afetada pela densidade.
            Voltando a fenômenos amplos, dessa vez globais, Hirsch, escrevendo por volta de 1880, apontou ter havido uma pandemia de maleita na Europa em 1855-1860, seguindo-se a ela uma grande redução na incidência da doença, conforme lhe pareceu ao observar os dados desse surto tendo se passado apenas vinte anos desde seu fim (Hirsch 1883, 229-230). Esse recesso relativo da malária pode ser relacionado a bruscas mudanças climáticas ocorridas a partir de meados do século. Mas avaliar a possibilidade de uma pequena era do gelo úmida ter sido sucedida por um período de secas recorrentes constitui algo que ainda demanda muita pesquisa.[4] Além de serem necessários mais avanços nessa área sofisticada e complexa de investigação, é difícil ligar esses fenômenos de enorme escala com o trajeto de doenças como a malária, muito embora McNeill (2010, 59-60) tenha julgado possível articular a história da malária e da febre amarela no Caribe com a periodização das oscilações El Niño, sendo elas mais circunscritas temporalmente, como se sabe. É particularmente arriscado conjuminar fenômenos globais com a história específica de municípios paulistas.
Microambientes distintos?
            A abordagem de Coelho e McGuire partiu do suposto de existirem ambientes diferenciados, espécies de microprovíncias epidemiológicas, dentro do complexo da fazenda. Aborda-se aqui essa possibilidade de uma maneira diferente, dando atenção à possível complexidade de cada vila. Isso é realizado através de referências às pessoas livres que morreram na infância e que haviam sido filhas de pais aparentemente casados (pois só se contam os casos em que apareciam os nomes dos dois pais do infante morto), reunindo os óbitos respectivos em grupos de irmãos falecidos. Se a malária e as outras endemias se concentrassem em famílias diferentes, ter-se-ia bons motivos para pensar em microambientes diferentes. Mas o que se passava era que elas apareciam combinadas nos trajetos de cada grupo, de modo que se tratou mesmo de um percurso executado pelo conjunto de cada vila. Tenha-se em mente que, em Capivari, a malária matou cerca de duas vezes e meia mais crianças livres que as outras endemias no conjunto do período considerado, ao passo que, em Limeira, preponderaram as outras endemias (sete mortes por essas causas para cada três por impaludismo).
Começando com Capivari, tem-se que a incerteza é muito grande, em virtude de sub-registro, de mudanças de nome e de uma provável instabilidade da presença das pessoas na área. Assim, em quase metade dos 213 casos, só foi possível identificar dois enterros de crianças por casal, o que é muito pouco.
Nesses casos de apenas duas crianças sepultadas para cada casal, os dois enterros ocorriam muito próximos no tempo, sugerindo que pai e mãe passavam pouco tempo usando aquele nome, ou então que os dramáticos deslocamentos da fronteira agrária só permitiam enxergá-los de relance. Essa situação acaba aumentando algumas seguranças. Mesmo tendo sido próximos no tempo os enterramentos de cada filho, ainda assim os dois tipos de doença abordados tendiam a misturar-se no trajeto mórbido de cada grupo de pequenos irmãos falecidos.
Dentre 99 casos com incidência de alguma das endemias dependentes de condições de vida, em apenas 30 não se anotou nenhum irmãozinho morto de malária. Preponderava, assim, claramente, a combinação ou sucessão das duas doenças em cada família. Não se tratava de áreas ou atividades separadas no interior da vila. O jogo malária-outras endemias era mesmo um jogo estruturado temporalmente. Não parece ter-se tratado de duas situações que convivessem como que em paralelo.
            É bastante arriscado, mas talvez seja possível reconstituir o trajeto mórbido dos filhos de José de Campos Almeida e Maria Rodrigues Penteado entre 1842 e 1861. Entre 1842 e 1852, perderam seis filhos, um para os vermes e três outros para a malária. Dos quatro que morreram entre 1853 e 1861, só houve conjetura do vigário sobre causas em relação a dois, pois os restantes faleceram ainda recém-nascidos (normalmente sem especulação sobre causas). Os dois cujas mortes se tentou explicar foram vitimados por lombrigas. O que se entrevê é a combinação de um ciclo (o da malária) com um atroz crescimento (o das doenças dependentes de condições de vida). Alguns outros óbitos de anjinhos também parecem ter entristecido essa família, mas a incerteza é grande demais para que eles sejam levados em consideração, e se o fossem o quadro não ficaria diferente.
            O caso de Limeira mostra-se até exagerado, pois em pouco mais de metade das 241 situações analisadas só foi possível identificar o enterro de dois irmãos filhos de cada um desses núcleos familiares. Repetem-se as suspeitas.
Quanto à tendência a que os dois tipos de doença aparecessem misturados nos trajetos dos grupos de irmãos, foi preciso, no caso de Limeira, proceder de modo inverso. Como a malária foi minoritária no jogo, é preciso medir a possibilidade de que ela aparecesse sozinha nos trajetos. Como as outras endemias em Capivari, foi rara essa aparição isolada da doença menos frequente. De 71 trajetos com algum caso de morte por possível impaludismo, só em 24 não houve também alguma morte causada por outras endemias. Predominava a conjugação das duas doenças, como na vila mais nitidamente açucareira. Reforçam-se as conclusões.
Considerações finais
            Tem sido defendido que o ambiente endêmico preponderava no Brasil rural sobre os choques vindos do Atlântico. O presente artigo pretendeu avançar na direção de que esse mesmo ambiente abrigava, no nível local, trajetos relativamente nítidos executados por tipos específicos de afecção. Isso tudo importa, primeiramente, porque, em grande medida, o problema da morbidade nas Américas e no Brasil deve ser visto como questão de tempo e de espaço, como se nota através de espécies de modelos intervenientes no raciocínio ligado à história das doenças infecciosas no período. Um deles é o dos choques súbitos vindos de trânsitos de patógenos e/ou vetores entre regiões afastadas e articuladas como centros e periferias; nesse caso, o foco costuma estar na varíola. Outro é o do enraizamento de males de origem distante que viriam a exercer seus efeitos em áreas novas, como no anterior, mas dessa vez sem choques, e sim como dramas quotidianos e contínuos; a malária é uma referência quase constante quanto a isso. Outro ainda é o de afecções que não se enraizavam, por carência de densidade demográfica, mantendo-se em circuitos que articulavam regiões distantes mas internas a uma mesma unidade territorial, como no exemplo do sarampo. Houve também o enraizamento em portos e cidades de males exógenos, demandantes de aglomeração, produzindo processos eventuais, embora discretos, de difusão por áreas vazias circundantes, e quanto a isso se pode lembrar a coqueluche. Por fim, males locais ou importados podiam simplesmente postar-se em situação de contínua expansão geográfica e de intensificação, de acordo com o alargamento da mancha da ocupação agrária, especialmente a exportadora, e o que ficou denominado aqui como endemias dependentes de condições de vida exemplifica afecções que operavam assim.
            O caso das endemias rurais, assim, compõe dois arranjos temporais diversos, mais que um trade off. É fato que algumas tendências à exclusão recíproca foram verificadas nos casos analisados. O avanço cafeeiro, implicando retração de canaviais, deslocou populações dentro de Limeira, substituindo a imersão em ambientes palúdicos pelo contato com solos secos que estimulavam outro tipo de morbidade. Mas os dados indicaram que passagens de um mal a outro, como doença preponderante, ocorriam mesmo sem mudanças de atividade (como o notado para Capivari). Nessa superposição de dinâmicas, o forte avanço das endemias dependentes de condições de vida operou como na discussão de Palmer sobre a ancilostomíase.
            Embora o trânsito entre atividades tenha afetado a questão em Limeira, especialmente no sentido de ter alterado o significado da expressão “febre”, não se tratou, aparentemente, de problema da coexistência de espaços diferenciados no interior das vilas. Deu-se, isso sim, o caso de dois tipos de doença cujos impactos se desdobraram em duas temporalidades diferentes, uma delas expressa sob a forma de um ciclo relativamente longo e a outra como um processo contínuo de crescimento.
            Incêndios recorrentes não constituem uma boa imagem para comunicar a triste história dos males rurais a que estavam sujeitas as populações da época. Um lodaçal expansivo – e com marola – comunica melhor sua situação. O que fica sugerido pelos dados é uma história de enraizamento de elementos atlânticos, ao lado da preservação e potencialização dos locais, consolidando-se interações regulares desses elementos com o ambiente e com as relações e atividades sociais. É análogo ao que se descreve, em relação a escravos, com o termo crioulização, fazendo referência à passagem de uma “tradição do Mundo Antigo para uma nova tradição” (Price 2003, 409). Práticas e traços de diversas procedências (inclusive africanos) encontram nas situações locais processos de reelaboração e recomposição, entrando em combinações cuja compreensão demanda atenção ao ponto de chegada, ou seja, às próprias sociedades onde tudo isso estava acontecendo. É por essa razão que teve importância no raciocínio a observação de que operavam trajetos legíveis, portanto regulares, da incidência de males endêmicos, levada em conta sua enorme e trágica importância.

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[1]  Quanto a Capivari, há muita informação em Melo (2009). Quanto à passagem do açúcar ao café ver Dean (1977, 45), que informa muito sobre Limeira. Os clássicos decisivos sobre a fronteira agrária paulista na passagem do século XVIII para o XIX são Marcílio (2000, cap. 9) e Luna e Klein (2005, cap. 2). Avança-se mais no século XIX com Motta (2012, 50-53, 136-151).
[2] Foram levantados 1705 registros de óbito de escravos (1817-1865) relativos a Bananal, 799 de escravos e 2448 de livres (1839-1859) no tocante a Rio Claro, 206 de cativos e 1083 de livres (1855-1874) para Mogi Guaçu, 206 de escravos (1861-1865) e 264 de livres (1861-1866) no que toca a Santa Cruz, 1260 de cativos e 2673 de livres (1833-1862) em Limeira e 2665 de cativos (1820-1870), assim como 2122 de livres (1820-1861) no caso de Capivari. Grande parte desses registros (mais de um terço) não pôde ser usada, o que se deveu às razões já expostas.
[3] A julgar-se pelo já sabido sobre período posterior, o avanço cafeeiro e a “maturação” em Rio claro, as décadas de 1870 e 1880 teriam inaugurado, para as crianças escravas, fortíssima prevalência dos vermes e das moléstias gastrointestinais, com substancial redução da importância da malária (Zero 2004, 114).
[4] Ver Boninsegna et al. (2009, 217) e Jomelli et al. (2009). A pequena era do gelo (LIA – meados do século XV a meados do século XIX) como período seco no Nordeste brasileiro, mantida a secura até o inicio do século XX, aparece em Zocatelli et al. (2012, 133) e em Novello et al. (2012). Variações quanto à precipitação, com sítios sugerindo maior pluviosidade durante a LIA, enquanto outros indicam o contrário, são ressaltados em Rodrigues et al. (2016, 63). Um “dry/wet dipole was formed between Southeastern and Northeastern Brazil” foi uma das tendências que Bernal e outros encontraram na bibliografia (Bernal et al. 2016, 194). Ênfase relativamente grande em resultados inversos da pequena era do gelo nos hemisférios norte e sul aparece em Souto et al. (2011, 49). Oliveira et al. (2014, 238) chegam a supor redução da precipitação durante a pequena era do gelo nas áreas litorâneas do Nordeste e do Sudeste, o que levaria a imaginar maior pluviosidade após o seu fim. Análises sobre partes mais meridionais indicam umidade crescente ao longo dos últimos mil anos, sem muitas indicações de algum intervalo seco mais duradouro (Jeske-Pieruschka e Behling 2011, 1260). Sendo tão difícil assim formar uma imagem geral a respeito do que passava com a precipitação no Brasil ao fim da pequena era do gelo, muito mais difícil seria imaginar o que se passou no período em localidades específicas.

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